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Honrar a Memória da Livraria 107

[Quem gosta de livros assim…]

"Quem gosta de livros assim devia ser condicionado

a dez quilómetros quadrados de território, entre o voo do falcão

e a edição de bolso esquecida atrás do castanheiro onde dois adolescentes

namoraram pela primeira vez, antes do pastor os ter espantado.

Quem assim gosta de livros devia ser deportado

(os leitores não têm países) para a costa oeste da Escócia:

o litoral e o sertão de uma típica aldeia escocesa.

Os anos suficientes para ter de pertencer a um gangue

e ter ai a sua introdução à política, a iniciação

a ficar calado. Quem levou anos a subir a um pequeno escadote

para chegar às prateleiras de cima, sem sinal de vertigens,

almeja o quê, merece o quê? Perdão, nem em esperanto!  

Se queria um ritmo mais rápido, que corra com as lebres!

Acho eu, que trato de seguros para calamidades e paixões!" 

- António Cabrita -

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O regresso de Bordalo I

"«Todo ele remexe, todo ele é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa desenham e imitam». Assim o define Raul Brandão, que o elege como caricaturista único, sem maldade nem escárnio desesperado: «o lápis dos outros amolga, envenena, destrói, faz gritar ou faz cismar: é talhado na pena vermelha do Diabo e molhado em fel. No lápis de Rafael Bordalo Pinheiro mistura-se o riso com a emoção. Até mesmo quando ridiculariza, este artista de génio faz amigos. Rafael Bordalo Pinheiro é uma força – o Riso».
No “Praça da Fruta”, Rafael é apresentado por Francisco Gomes de Avelar a um dos narradores, que o define como «uma figura esfusiante de energia e de simpatia. De olhos negros, irrequietos, um pouco trocistas mesmo quando a feição assume ar de gravidade, nariz grosso, cabelo crespo, porte elegante apesar de alguma tendência para a obesidade». O narrador contemporâneo lê num diário o registo da conversa, e sabe-lhe a pouco: «Parece-me inacabada. Procuro em vão a sua continuidade, noutros manuscritos, em notas dispersas, papéis avulsos. Nada. Falta-me a chave do enigma. A resposta a uma pergunta que tem mais de cem anos. Onde foi ele buscar os bichos de cores incandescentes que povoam a cidade? Será que os trouxe? Ou já por cá andavam quando chegou?».
Morreu em 1905, depois de conquistar a imortalidade, o que significa que ficou por cá, pelos recantos da vila que projectou no imenso mundo ávido do seu talento, e eis que surge um segundo enigma: por onde tem andado?
Por mim, atrevo-me a sugerir que se refugiou na Loja 107, com a cumplicidade da Isabel Castanheira. Entrávamos naquele espaço, e lá estava ele, por todo o lado: nos gatos com nomes de artistas, mansos e discretos como a suave Pili; nos bustos de bigode farto e monóculo atento; nas gravuras suspensas no tempo e nas paredes; no traço genial que nos faz soltar um riso de emoções contraditórias, algures entre a raiva, a compaixão e a ternura; na resistência cúmplice, às vezes inútil, contra a vulgaridade, o que ditou a exaltada exclamação de Fialho de Almeida: “Tanta iniciativa, talento e trabalho, para ali, em estilhaços, no meio da indiferença …”.
Às vezes saíam à rua os dois, ele e a Isabel, em breves passeios pelas ruas da cidade e pelas páginas da Gazeta das Caldas.
Mudam-se os tempos e com eles velhos hábitos com que fomos felizes, como o de passear pelas ruas da cidade, uma bica naquela esplanada, dois dedos de conversa naquela esquina, uma espreitadela naquela montra.
A indiferença, sempre a indiferença, fez-nos ceder ao despotismo do consumo uniforme, sem espaço nem rasgo para a audácia e para a alternativa. A qualidade e a ousadia criativa silenciaram-se nos escaparates ruidosos das grandes superfícies comerciais, alimentados pelo ruído ensurdecedor que faz e vende “artistas” em “horário nobre”.
O refúgio de Rafael não resistiu ao cerco. Desalojado, veio para a rua. Ou talvez não. Por mim, atrevo-me a sugerir que se refugiou com a Isabel, sua eterna cúmplice. Lá em casa vi-o por todos os lados: os mesmos bustos, os mesmos quadros, os mesmos vestígios, outra gata, mas tão discreta como a suave Pili.
Entretanto, a cidade começa a reconhecer-se no seu mais universal filho adoptivo, e eis que em boa hora surge uma rota bordaliana que se saúda, e que tem início logo ali à saída da estação de caminho de ferro: azulejos, rãs e água. Água e barro, o código genético da cidade, que redescobrimos sempre que recuamos um pouco na sua/nossa história.
Mas lá no novo refúgio, nunca os cúmplices deixaram de conspirar, e ei-los de mão dada, numa obra que vasculha cada um dos recantos da nossa cidade, que nos convoca e surpreende em cada página. Chama-se “As Caldas de Bordalo”.
Maravilhados, descobrimos Bordalo e reconhecemo-nos na cidade que se desvenda naqueles becos, ruas, praças e jardins, numa viagem de 89 passos e 10 pausas, com pormenores que talvez já tenhamos visto e esquecido, nas nossas ruas “quase invisíveis de tão habituais” como dizia Jorge Luís Borges.
A obra, da autoria de Isabel Castanheira, com grafismo de Miguel Macedo, será apresentada no CCC, no dia 6 de Dezembro."

 - Carlos Querido -
Pub. a 14 de Nov. 2014 - "Rubricas Semanais" , Jornal GAZETA DAS CALDAS 

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O regresso de Bordalo II 
 
"Sobre a figura do Zé Povinho escreveram-se teses, tratados, páginas infindáveis, resumidas, afinal, numa frase breve e feliz de Raquel Henriques da Silva: «é no diminutivo inho, com que a língua portuguesa exprime o afecto e o desdém, que a figura se define e se torna Ninguém, sendo toda a gente». 
Zé Povinho é “ninguém”, porque não nos reconhecemos individualmente naquela figura tosca, grosseira, rude, atarracada, sem pescoço, mas tão familiar. É “toda a gente”, porque nele nos sentimos retratados como nação, espoliada, enganada, vítima da sua bonomia, convertida em desistência como modo pragmático de sobreviver.
 Acolhemo-lo como um dos nossos, em todas as gerações. Rimo-nos com ele, mais do que dele. Rimo-nos de nós: poderosa forma de resistência.
 Da inércia da criatura lamentava-se carinhosamente o criador: «nunca se levanta que não se deite». A enervante passividade é a função que lhe reserva o poder que o albarda, como explica Ramalho Ortigão no “Álbum das Glórias”: «cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga e sua satisfatoriamente. De resto, dorme, reza e dá os vivas que são precisos».
 Zé Povinho nasceu n’A Lanterna Mágica, numa primeira imagem elucidativa do seu destino: o pobre Zé caminha na rua incauto quando lhe sai ao caminho o ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, com uma bandeja na mão esquerda, enquanto a direita aponta para o Santo António, o chefe do governo Fontes Pereira de Melo, que com ar seráfico segura carinhosamente ao colo um “menino Jesus” com a figura do rei D. Luís; o pobre Zé levanta um pouco o chapéu, coça a cabeça hesitante, olha para o comandante da Guarda Municipal, barão do Rio Zêzere, ali sentado, vigilante, com um chicote ameaçador, e lá acaba por depositar na bandeja as duas únicas moedas que descobre nas algibeiras viradas do avesso.
 Zé Povinho acompanhará para sempre Bordalo Pinheiro, e no jornal A Paródia, na edição 107, que anuncia o falecimento do seu fundador, ei-lo como figura de destaque ao lado da inevitável albarda.
 Também na Loja 107 a sua presença era constante, a espreitar por todos os lados: logo à entrada, à esquerda, na belíssima serigrafia de Xohan Viqueira (imagem que acompanha esta crónica); um pouco mais adiante, numa vitrina, multiplicado em vários formatos, à mistura com gatos bordalianos; ao fundo, sobre uma estante, enorme, em cerâmica, em pose de monumental manguito.
 Logo nas primeiras páginas de “As Caldas de Bordalo”, surge mais um cúmplice desta aventura pelas ruas da nossa cidade, um suspeito habitual nas lides bordalianas. Trata-se do editor, João Paulo Cotrim, autor de vasta obra sobre Bordalo Pinheiro.
 Íntima da cidade e de Bordalo, com quem segue de braço dado, a Isabel Castanheira convoca mais dois amigos inseparáveis do homenageado: Júlio César Machado e o gato Pires, que se esgueira pelo gradeamento do Parque à procura de festas. Seguem em amena cavaqueira, quando aparece mais alguém. Diz-nos a Isabel: «De repente, logo ao virar da primeira esquina, surgem-nos o Zé-povinho e a Maria da Paciência, pedindo para nos fazerem companhia; era impossível dizer que não a tão ilustres personagens, pelo que a alegria tomou conta do grupo, transformado em estranha comitiva em busca das boas lembranças e de remédio para as saudades…».
 Na Avenida 1.º de Maio, o grupo detém-se junto à porta do n.º 9, e sobe ao primeiro andar, onde está instalada a sede da Associação Comercial dos Concelhos das Caldas da Rainha e Óbidos, uma instituição que foi casa da Isabel Castanheira nos tempos da Loja 107. Ali se revêem, num belíssimo quadro, Rafael e o seu personagem Zé Povinho.
 Ouçamos a narradora: «À entrada, em lugar de destaque, deparamos com um Rafael Bordalo Pinheiro sentado, e a olhar-nos de forma perscrutante, como era seu hábito. Por cenário podemos observar vistas e figuras emblemáticas das Caldas e de Óbidos. Por companhia, alguns dos figurantes com quem gostava de confraternizar, a Ama das Caldas, em atitude maternal de despudorada amamentação pública, e o Zé-povinho de ancas balanceadas. Lagartos e rãs de esplendorosa cor verde-caldas trepam, brincalhões, por Rafael, o qual, de semblante carregado, nos provoca com o seu olhar algo melancólico… Trata-se de um belíssimo quadro do pintor caldense Taraio, a recordar-nos que Rafael Bordalo Pinheiro foi um dos fundadores da Associação Comercial, nos idos de 1902, com a designação de Associação Comercial e Industrial das Caldas da Rainha. Este quadro foi concebido em resultado da homenagem que a Associação Comercial prestou ao mais insigne dos seus fundadores na data da comemoração do seu centenário».
 De regresso à rua, Zé Povinho mantém a boca escancarada pela surpresa do reencontro com a sua figura. Tirou o chapéu e com a mão direita vai coçando a cabeleira desalinhada. Eis senão quando surge nova surpresa: alguém aponta para um telhado e o grupo pára e interroga-se «É um Zé-povinho! Mas como é que este Zé-povinho foi parar acima do telhado das instalações do Centro de Educação Especial Rainha D. Leonor?».
 Isabel Castanheira conta-nos. Vale a pena ouvi-la, ou lê-la, nas páginas de “As Caldas de Bordalo”.
 
- Carlos Querido - 
Pub. a 21 de Nov. 2014 - "Rubricas Semanais" , Jornal GAZETA DAS CALDAS

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O regresso de Bordalo III
 
Insondável, enigmático, foi um deus no antigo Egipto e um feiticeiro na Idade Média. Exerceu profundo fascínio sobre artistas e escritores tão diversos como Hemingway, Mark Twain, Dickens, Picasso, Matisse, Salvador Dali, Andy Warhol, Manuel António Pina e Rafael Bordalo Pinheiro. O poeta Alexandre O'Neill tenta desvendar o mistério que o envolve e questiona-o assim: «[…] De que obscura força és a morada? / Qual o crime de que foste testemunha? / Que deus te deu a repentina unha / que rubrica esta mão, aquela cara? / Gato, cúmplice de um medo / ainda sem palavras, sem enredos, / quem somos nós, teus donos ou teus servos?».
 
Na Loja 107, entre os livros, as figuras de Bordalo e outras memórias, dormitavam dois gatos, e a sua presença discreta e tranquila contribuía para a atmosfera de intimidade cúmplice em que nos refugiávamos do bulício da rua. Para além destes dois seres ronronantes, muitos outros espreitavam das prateleiras, homenagem do mestre Bordalo aos bichos que mais estimou neste mundo: o gato Pires e à gata Pili.
 
Na última crónica deixámos a Isabel Castanheira a explicar a um animado grupo, por que razão se encontra o Zé Povinho em cima de um telhado. Esclarecido o enigma, voltamos a acompanhá-la na aventura da descoberta da cidade através das profundas marcas deixadas por Bordalo Pinheiro.
 
Onde há Bordalo há gatos e é mais do que justa a sua inclusão na rota bordaliana que atravessa a cidade e desagua no Parque. É no encalço destes felinos que segue hoje a Isabel e o seu animado grupo na aventura de “As Caldas de Bordalo”.
 
Diz-nos a narradora: «Eis-nos agora em frente do n.º 36 da rua Heróis da Grande Guerra, onde os gatos representados num friso de azulejos, nos enfeitiçam com os seus olhares enigmaticamente felinos. Apesar do evidente estado de degradação do edifício, ainda hoje podemos constatar um pouco do encanto policromo de antigamente, conferido pela harmonia de três diferentes padrões de azulejos utilizados na decoração da fachada. Os gatos, de pelagem escura e de orelhas espetadas, têm ao pescoço uma coleira amarela com um guizo pendente e perscrutam, com um profundo olhar verde-esmeralda, um menino equilibrado à beira de um telhado, uns tantos metros mais à frente, no Beco do Borralho. Será possível que num entardecer destes – à hora mágica em que realidade e imaginação se fundem – possamos ver o menino a correr atrás dos gatos, a querer puxar-lhes a cauda ou os bigodes?».
 
Segue-se uma confissão: «Os gatos de Rafael Bordalo Pinheiro, são uns animais inesperados, sedutores e de presença constante. A mim, já há muito seduziram. Escondidos nas páginas d’ O António Maria, de Pontos nos ii, dos almanaques, muitas vezes me têm lançado olhares plenos de desafio, como que provocando-me a libertá-los dessas páginas esquecidas e a trazê-los à vida».
 
Vem depois um pouco de história, da cidade e do seu mais ilustre filho adoptivo: «Em 1884, Rafael Bordalo Pinheiro vem para as Caldas da Rainha, literalmente, meter as mãos no barro. E fá-lo precisamente na Fábrica de Gomes de Avelar. É dessa época de aprendizagem e de experimentações um dos primeiros gatos cerâmicos bordalianos: um prato com um gato pintado. Este gato apresenta o mesmo vigor, a mesma genica, a mesma graça, do que os gatos desenhados a carvão, ou a lápis. Não será o facto de se dedicar a um novo processo criativo que impedirá Rafael de continuar a fazer gatos. E eles aí estão – belos e enigmáticos – para serem admirados».
 
Isabel Castanheira conta-nos depois a ternurenta história da relação de Rafael Bordalo Pinheiro com o gato Pires. O bichano começou por fazer umas tantas diabruras que levaram a família do mestre a fazer-lhe um ultimato. O resultado foi o degredo para a Fábrica das Caldas, mas na hora da partida as denunciantes, esposa e filha, não resistem ao mudo apelo do bicho e lá o levam de volta para Lisboa, onde acompanha o dono até à morte. É neste momento que a narradora convoca Cruz Magalhães, poeta, coleccionador, admirador de Rafael, a quem se deve a criação do museu no Campo Grande, que nos fala dos últimos dias de Bordalo, do gato Pires e da sua recusa em abandonar o leito do dono, persistente para além do falecimento deste. Temporariamente desaparecido, estava, afinal, escondido sob as coroas de flores que cobriam a urna. Depois da descida à terra foi acolhido no regaço terno de Leonor, esposa de um grande actor da época.
 
Quem seria? Mais um enigma que Isabel Castanheira desvendará perante o emocionado grupo que a acompanha.

 

 - Carlos Querido -
Pub. a 28 de Nov. 2014 - "Rubricas Semanais" , Jornal GAZETA DAS CALDAS

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A LUZ DA MONTRA

"Faz-me isto perceber que o paraíso, tal como eu o entendo, se extinguiu? De certo modo, faz.  

Quando lá passo, não sendo embora dada a nostalgias, suspiro. Existe ali alguma coisa que, para além de eliminar, ocupa. Antes tivessem demolido a casa. Como sinal, seria muito triste porém de modo algum assustador. Na substituição é que reside a maior repugnância da imagem. Ali não há destino. Não se trata de uma força da pura natureza, como um vulcão ou um tremor de terra, que destrói pela raiz uma cidade. Ali o que há é uma ocupação. Um modo de viver que esmaga o outro. O motivo é o mesmo de sempre, fome de ouro, fome de territórios. Uma civilização cai, a outra pisa. O processo é diferente, inovador. A colonização não se produz por meio do terror mas do embalo, de uma hipnose à maneira da ficção científica. Podíamos ou não ter resistido? Podíamos ou não ir comprar livros? Podíamos ou não compreender que tudo é novo e a nossa própria escala de inovação precisa de adaptar-se, respondendo?

A Maria Isabel fazia tudo. Eu, por mim, não fiz nada. Ainda há um ou outro lugar onde fulgura um comércio livreiro que consegue tornar essa palavra - comércio - num poema. Mas ninguém se erguerá em sentinela. No entanto, era fácil, era apenas opor um estilo a uma força bruta. Uma delicadeza a um mau gosto. Uma medida humana a algo informe.

O paraíso, tal como o entendo, estava naquela montra com livros e com gatos. Iluminando e sendo iluminados. Gil Vicente e Florbela, com os seus diferentes temperamentos e pelagens, elevavam a um grau de perfeição impensável sem eles ou, mais tarde, sem a sua memória, a 107. Da parte deles fica a beleza. Mas da nossa fica esta espécie de arrependimento."

- Hélia Correia - 

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Isabel, a Livreira

"A Isabel Castanheira é para mim, a livreira. Livreira no sentido mais abrangente e exaltante que esta palavra pode ter: a paixão pelos livros, a admiração pelos autores, a simpatia e paciência com os clientes-leitores, a tertuliana, a amiga.

A sua livraria – a 107 - nas Caldas da Rainha, hoje uma loja igual a tantas outras, marca uma época de explosão do livro, mas também de liberdade e de convívio. O seu empenho em iniciativas paralelas à venda de livros como foram os encontros com escritores no café do parque, em que participei com todo o gosto, testemunhava a enorme vitalidade que transformava um ofício numa arte.

A população das Caldas, à excepção de alguns amigos, não soube dar-lhe o valor e não percebeu a importância que a 107 e a Isabel tinham e deviam continuar a ter. Penso que não foram apenas a crise económica e a concorrência avassaladora (feiras, supermercados, saldos) que contribuíram para o fecho da livraria. Foi também a acomodação e a insensibilidade com que todos nós lidamos, no nosso dia-a-dia, face à realidade dos livros e dos livreiros.

É mais prático comprar um livro numa Fnac ou num centro comercial em Lisboa ou no Porto, recebendo a ninharia de uns 10 por cento de desconto ou de pontos para futuras compras, do que fazê-lo na livraria da vila ou da cidade onde se vive. Vai tudo por atacado: açúcar, leite, bolachas, café, batatas e, já agora, um livro que esteja na moda. E muita gente vai ganhando o vício de esperar pela Feira do Livro de Lisboa, que favorece apenas os editores, em vez de ir comprando ao longo do ano nas livrarias.

Também nesta atitude se manifesta uma apatia, um deixar andar, um desinteresse cada vez maior pela cultura, uma ausência de solidariedade gritante, uma demissão perante o momento que se está a viver em Portugal. Estamos a deixar-nos vencer, a deixar-nos agarrar por uma mão negra, a deixar-nos aprisionar pela nossa própria inércia. Não podemos culpar um regime como fazíamos antigamente. Somos livres. Mas não agimos.

Um beijo para a Isabel."

Jaime Rocha - 

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Memória da inundação 

"[para Isabel Castanheira]

possuo neste instante e por agora

floresta de lágrimas

na sala quase vermelha que espreito:

os títulos dispersos

não tentarão mais matar a sede

esta sede de sebes

quedos que nem muros

de capa dura amolecendo

folha caduca fora de época

nada agora aqui

não oiço gemer o verbo a capitular

a mão desenhando a leitura que discorre

apesar do chão esvoaçando no líquido

das humidades desfazendo possibilidades

afogando-se no pesado jardim de páginas

desejando forçar passagem

para o mundo para as coisas

que acolhem abertas libertinas coxas

nada agora aqui ainda assim

escorrendo musgo

com extremosa lentidão"

- João Paulo Cotrim -

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O Inferno de Borges*

"Jorge Luís Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de costas numa plantação de bananeiras. Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e todos eles com livros empilhados até ao teto. Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando morremos reencarnamos jovens e Borges não se recordava de como isso era.) Caminhou devagar entre as bananeiras. Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as coisas. A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida começou a atormentá-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes, os pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu imensamente azul. Borges lamentava a ausência de livros. Se ali ao menos existissem tigres – tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do dorso –, se houvesse algures um labirinto, ou uma esquina cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras, bananeiras, ainda bananeiras. Bananeiras a perder de vista. Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita plantação. Era como se andasse em círculos. Era como se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo – além do mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre bananeiras?

Borges não gostava da América Latina. A Argentina, como se sabe, é um país europeu (ou quase), que por desgraça faz fronteira com o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges, aquele quase sempre foi um espinho cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ele ainda tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso estavam mortos. O pior eram os negros e os mestiços, gente capaz de transformar o grande drama da vida – da vida, meu Deus! – numa festa ruidosa. Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos gregos (gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso das velhas catedrais. Foi então que a viu. À sua frente uma mulher flutuava, pálida e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado para o sol e as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso para Borges não tinha grande importância (a especialidade dele sempre foram os tigres). Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o com outro escritor latino-americano. Aquele paraíso fora construído, só podia ter sido construído, a pensar em Gabriel García Marquez. Jorge Luís Borges sentou-se sobre a terra úmida. Levantou o braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel García Marquez e voltou a experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o escritor colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor longínquo da noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o lajedo frio de uma biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto infinito, forrado de estantes até o teto, e nessas estantes todos os livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de palavras em todas as línguas dos homens. Jorge Luís Borges descascou outra banana e nesse momento um sorriso – ou algo como um sorriso – iluminou-lhe o rosto. Começava a adivinhar naquele equívoco cruel um inesperado sentido: sendo certo que o paraíso do outro era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de ser, certamente, o inferno do outro. Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa. Era um bom inferno, aquele." 

- José Eduardo Agualusa - 

*(Este texto, dedicado a Alexandra Lucas Coelho, referente ao universo borgeano dos livros, foi oferecido pelo autor como contributo para a homenagem à Loja 107.)

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Segurar os livros

"Lembro-me de entrar na livraria da senhora Isabel Castanheira.

Há pessoas que seguram os livros com total consciência da sua delicadeza. Admiro essas pessoas, gosto de ouvi-las, embora eu, também rodeado, não seja capaz do mesmo zelo.

Em livrarias de prateleiras organizadas por ordem alfabética, pergunto-me se estes livros aqui guardarão rancor pelo caos a que os obrigo.

Às vezes, escolho dois ou três e levo-os a dar uma volta ao mundo. Habituados à luz desta casa, acredito que essa montanha-russa lhes arregale os olhos.

Regressam estrangeirados, a falarem com sotaque. Se tiverem sorte, trazem as capas mais ou menos dobradas. Só por grande casualidade ocuparão o lugar que tinham antes.

Imagino o que contam aos que não saíram daqui. Quase de certeza que esse relato lhes aumenta a ansiedade. Quando me aproximo, os aventureiros desejam que o meu braço se estenda na sua direção e, com muita probabilidade, haverá outros agarrados ao que conhecem, com medo de amplitudes térmicas desconhecidas.

 

Eu olho por eles, eles olham por mim. O tempo continua. Sei que têm memória e, quando não estiver cá, espero que não esqueçam o quanto dependi deles. Pertenço-lhes mais do que eles me pertencem a mim."

- José Luís Peixoto -

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A Isabel e a 107 estão para sempre ligadas ao meu gosto pelos livros e pela literatura. Foi lá que adquiri aquelas obras que se lêem aos vinte anos e que nos acompanham para sempre. Boa parte da minha formação literária deve-se à Isabel e à 107. E fui sempre voltando. Tenho muitas marcas da 107 – marcas na vida e marcas de livros (não se pode dobrar as folhas dos livros, não é, Isabel?).

A cidade e nós devemos-lhe a Livraria, a 107, e uma imensa actividade cultural. Trouxe tantos e tão importantes autores às Caldas da Rainha. Os livros e os escritores entravam-nos em casa por essa porta. Em conjunto organizámos uma semana de formação em torno da Poesia Portuguesa Contemporânea (lembras-te, Isabel, na Associação Comercial?).

Um dia (veja-se ao que isto chega…) roubaram-me os dois volumes da edição da Ática do Livro do Desassossego. Como é um dos meus livros favoritos, fiquei mesmo triste. Contei a história à Isabel. E ela, de surpresa, ofereceu-me dois exemplares que conseguiu arranjar junto do editor.

Sempre tive da Isabel palavras de estímulo, de apreço, de reconhecimento. Apesar de não gostar de poesia. Ajudou-me sempre apresentação dos meus livros. Da última vez, já só ela, imprimimos juntos um poema. E sei que da próxima estará de novo ao meu lado. Conto contigo, Isabel!

Um abraço do 

- José Ricardo Nunes -

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Isabel Castanheira, Caso e Símbolo

A última vez que entrei na Loja 107 havia uma pilha de livros equilibrada sobre uma outra pilha de base mais ampla, e essa outra sobre uma banca carregada de livros, sendo que essa pirâmide ocupava por sua vez o centro de um espaço feito de estantes  forradas  de livros.  A livreira aproximou-se da pilha mal equilibrada e falou com entusiasmo da chegada em força de um escritor proveniente do Japão. Era a manifestação da sua descoberta da altura, Haruki Murakami, e o livro que Isabel Castanheira achava imprescindível naqueles dias que corriam, era “Kafka à Beira-mar”. Então foi buscar os outros títulos que tinha do mesmo autor e colocou-os ao alto, sobre a pilha  que mal se empinava sobre a outra pilha, e esta sobre uma outra que ocupava todo o  expositor.  Mas quem ali estava sabia que semelhante amor por Murakami  não era único.  A sua fidelidade a livros e autores não tinha a ver com a fidelidade comum, feita de um para um. No seu coração, como no coração de todos os grandes leitores, quanto mais fiel se é a um autor, mais se ama outros e outros.  A prova é que naquele fim de dia de uma Primavera tardia, a livreira ainda tinha presente a visita  recente  de alguns autores portugueses  à sua loja de livros.  À direita de quem entrava, a meio da estante, encostado  às lombadas,   lá se encontrava um cartaz com  a fotografia de Lobo Antunes  que por ali havia passado pouco tempo antes. Desse autor também tinha uma pilha sobre outra pilha, e falava dos despojos dessa visita com  a vivacidade de quem, além dos livros, sabe que os autores podem trazer atrás de si, um universo da fantasia que dá para alimentar a vida de quem gosta de livros, durante anos inteiros. Isabel Castanheira conhecia o conteúdo dos livros  bem como o percurso  de quem os havia feito chegar até  si.  Os leitores chegavam e ela gritava a partir da caixa registadora – “ Venha cá. Tenho aqui um livro mesmo bom para si!”

Mas já então a caixa registadora era uma máquina avariada.  O ofício  começava a deixar de se compaginar com a missão.  A eficácia do presente já não passava pelos mesmos  ingredientes que haviam conduzido ao sucesso das duas décadas anteriores.  A qualidade  já tinha passado a ser apenas um superavit em relação à lógica do best-seller. O suporte do papel começava a consentir a explosão da banalidade. Das  bancas de jornais já  tinham  desparecido os jornais, escondidos agora lá no fundo dos quiosques,  para darem lugar às revistas de intriga mundana,  com histórias de sofrimentos ilustradas por caras a rir em  estado de euforia.  A  tão celebrada desmaterialização dos livros já tinha começado a materializar-se e bem, nas páginas coloridas das fotonovelas das vidas íntimas.  Isabel Castanheira ainda não tinha a certeza, mas já  receava o futuro,  quando falámos por esses dias.  Creio que foi  há  dez  anos. Percebia-se  então  que iria acontecer uma mudança  em ritmo galopante, e é  nele  que estamos. Não há  força  que resista.  O que persiste, então? Isabel Castanheira  fechou a Loja 107, mas não fechou o seu amor pelos livros.  Em algum lugar ela está connosco, ela sabe que faz parte de uma seita indestrutível, mesmo que o futuro seja incerto,  e  os meios  sejam outros e  os seus efeitos ainda indecifráveis.  Seja como for, Isabel  Castanheira está com os livros literários, ela é uma das nossas fiéis companheiras.  Em nome de todas as livrarias que fecharam,  como a sua,  o melhor que podemos fazer é acreditar na renovação dos meios, e que alguém  possa  abrir a porta de uma outra Loja 107,  em nome daquela que fechou. E a isso se chame futuro, e  Isabel Castanheira e a sua família, no meio da nossa seita,  que perdurará,  ainda que de outro modo, continuem a ser no mundo dos livros  um  caso e um símbolo. 

- Lídia Jorge -